sexta-feira, 21 de março de 2008

Já se ouvem os sinos tocando a rebate

1.
Quando o sino tocava a rebate, a aldeia levantava-se em peso e corria. Acorria. Todos. A maior parte nem sabia a quê. Mas acorria correndo. Homens, mulheres, jovens, crianças. Era uma solidariedade tão intensa e tão humana que apagava diferenças, que apagava inimizades.
Normalmente era um fogo. Agora chamam-lhe mais um incêndio. Entre “fogo” e “incêndio” ia e vai um abismo de distância semântica. O “fogo” continha mais a inocência trágica do fortuito ou do louco; o “incêndio” continha mais a culpabilidade dramática do ódio ou do dinheiro.
Eram raros, um e outro. Agora são mais frequentes, principalmente o “incêndio”. Tornou-se praga nacional, com direito a época própria. E a ele se associa, sempre e cada vez mais, a culpabilidade dramática, não do ódio, mas do cinismo que tenta justificar a incúria irresponsável e o jogo de interesses, de que muitos se aproveitam. Justificam-se com a “seca”. O que tem alguma verdade. Como convém. Para desviar a atenção da incúria irresponsável e do jogo de interesses, os verdadeiros incendiáros.
2.
Se o cinismo oportunista - tentando ocultar a incúria irresponsável, o jogo de interesses e o seu “aproveitamento”, oportunista ou ladrão -, se cingisse só aos incêndios - que cobrem tudo dum negro que se nos espeta na vista, descendo ao coração chorando -, isso seria um mal menor ainda, de solução bem possível, assim houvesse vontade.
Mas o pior de tudo, e esse é o mal maior, é que esse cinismo oportunista se tornou táctica política, contaminando largos sectores sociais, principalmente aqueles que mais resistem à desumanização tecnocrática crescente, ou que estão mais fragilizados. E essa táctica política tornou-se agora incendiária, perseguindo uma política estúpida de terra queimada e anárquica.
Há exemplos concretos disso na área da Justiça, na área da Saúde e, muito principalmente, na área da Educação.
3.
O Primeiro-Ministro quis sempre dar de si uma imagem de determinação. Construíram-lhe essa imagem com recursos que nós pagamos. Disseram-lhe que decidir era importante – como, porquê, para quê e com que consequências, isso pouco importava, pelo que ele não tinha que justificar nada. Enredou-se em decisões sem fundamentos sinceros, que tivessem validade, num voluntarismo tonto de mostrar que decidia contra tudo e contra todos, que isso é que era ser
determinado, decidido, corajoso. Que isso é que dava a entender que ele sabia o que queria, que ele sabia para onde ia.
Foi obrigado a recuar. Foi obrigado a dar o dito por não dito. Não de uma forma digna e justificável, mas de uma forma arrogante e autoritária, demonstrando insegurança, desnorte, casuismo e oportunismo. E logo as suas luminárias patetóides, acharam que isso não podia ser. E deram-lhe o sábio conselho de reforçar, de forma irracional, a trincheira do ataque descabelado ao sector da Educação, só para salvaguardar a imagem de barro do homem decidido, que não é, e que sabe para onde vai, embora quanto mais avança, mais se veja que não sabe.
E foi assim que ele ensaiou frases e meias frases para dizer na televisão, mas tão desastradas foram que logo todo o mundo viu que ele não sabia daquilo que debitava numa repetição confrangedora: aulas de substituição, Inglês, mais tempo nas escolas, mais tempo nas escolas, Inglês, aulas de substituição, aulas de substituição, aulas de substituição, avaliação, avaliação, avaliação. E mais nunca disse.
Foi então que recebeu pronto o apoio descarado e poderoso das agências mediáticas que controla, ou por cujos interesses vela, e que lhe fizeram o favor, não só para o defender, mas também para intoxicar a opinião pública contra os docentes.
Foi programa atrás de programa, entrevista atrás de entrevista, comentador interesseiro, oficial ou oficioso, atrás de comentador. Uns distorceram as causas da indignação dos professores; outros, insidiosos, lá iam deixando escapar frases subliminares, dando sempre a entender que os professores eram preguiçosos, que o insucesso era só culpa deles, que estavam mal preparados, que temiam a avaliação.
Todos eles, em uníssono, tentavam desmobilizar a manifestação de 8 de Março. Saiu-lhes pela culatra o tiro. A sua desfaçatez mercenária incendiou ainda mais os ânimos dos professores indignados. E estiveram em Lisboa 100 mil.
4.
Havia que fazer esquecer as imagens dessa imponente manifestação que irá fazer história. E então lá vem o comício nacional do PS. Poderia até já estar programado. Mas, objectivamente, e como foi reconhecido, esse comício foi feito, para se conseguirem umas imagens apertadinhas, num espaço pequenino, que ocupassem o espaço mediático, tentando “tapar” as imagens da manifestação dos professores.
Não faltou nesse comício aquela senhora, em forma de múmia, que foi ministra da Educação, que recebeu umas palminhas de desagravo, mas não abriu a boquinha, pequenina, coitadinha, como diria o Garrett.
E na encenação daquele ajuntamento socialista não faltou aquele truque, tão velho que já tem barbas, de escolher sala pequena para que as pessoas não coubessem, ficando algumas na rua, para a comunicação social amiga dizer que eram tantas, tantas, tantas que nem cabiam no lugar tão vasto.
Mas o melhor de tudo, foi, terminada a “missa”, ver o Sócrates sair para a rua, de peito feito e destemido, descendo a rua em direcção ao local onde tinham estado de luto alguns professores muito dignos, a ver se recebia a esmola de receber um insulto. Um estalo na cara, então, é que vinha mesmo a calhar, para se fazer de vítima. Ele pensa que os professores são como ele. Não teve a sorte que queria.
5.
Depois daquela manifestação, que foi todo país em Lisboa, e Lisboa em todo o país, começaram a falar mais alto os comentários politicamente correctos dizendo que agora o Sócrates é que não podia recuar, e tinha que manter a ministra. É um critério tido por sério. Mas que no meu entender é mesquinho.
Para manter a ministra, embora ela seja um peso morto, continua a valer tudo. Até mesmo a mentira. Mesmo as provocações. Rápidos, fizeram cedências para enganar o país. Chamaram-lhe “flexibilidade”, chamaram-lhe “simplificação”. Eles até cediam a tudo, desde que os professores se calassem e deixassem que eles dissessem que não tinha havido recuo. Mas os professores não são hipócritas. E, ao contrário deles, levam a educação a sério. Não caíram nem vão cair numa armadilha tão sonsa.
Eles dizem que vão continuar com esta pseudo-reforma. Na verdade não é reforma: é um ataque cerrado a dignidade dos professores, é uma tentativa de continuar a humilhá-los. Na sua teimosia egoísta e estúpida, querem destruir a Educação, incendiando tudo à passagem, num atentado à democracia, num atentado à inteligência.
E o que eles querem também é usar os professores como carne para canhão, pensando que isso lhes dará votos numas próximas eleições.
Por isso, em vez de paz, eles querem guerra. É isso que os leva a diabolizar os professores, denegrindo-os o mais possível.
Mas nós não vamos desistir. Ninguém abdica da sua dignidade. Muito menos os professores. É que, se o fizessem, estavam a abdicar também da dignidade e da qualidade do Ensino Público, da dignidade do país.
E isso, os professores não vão deixar.
Já se ouvem os sinos tocando a rebate. O povo acorrerá para apagar o incêndio, ateado pela irresponsabilidade, pela irracionalidade, pela incúria, pelo jogo de interesses, pelo jogo eleitoral, para queimar a educação.
E mesmo que o povo não acorra, os professores vão acorrer sempre.
Eles já andam de luto.
Mas esse luto encerra em si a esperança da ressurreição.

4 comentários:

Anónimo disse...

Bom dia António:
Os seus textos, os do meu amigo Zé Machado e outros que por aqui circulam, são verdadeiros tratados de educação, que cada vez nos põem mais luto na alma.
O meu receio é que este luto nos fragilize tanto que comecemos a ficar sem forças para a grande luta que continua a ser necessário travar.
Outro luto, e que afinal é exactamente o mesmo, é pelas cenas chocantes que acabei de ver numa sala de aulas da escola secundária
Carolina Micaelis,onde uma professora é desrespeitada até ao limite, por uma aluna e,pior do que isso por toda uma turma que goza, assiste e filma, como se duma cena de circo se tratasse.Claro que foi aberto processo, mas a professora não apresentou queixa!Que quer nisto dizer
Para onde vai a educação deste País?Para onde vai afinal este País?É que este país vai para onde for a educação. Mas os nossos governantes não querem ver isto.O futuro não os preocupa, por muito que digam que é em nome do futuro e da modernização que actuam.
Egoisticamente, penso na minha neta,e começo a não - ter saudades do Futuro - como tinha Agostinho da Silva.Mais do que saudade tenho um sentimento de profundo receio e tristeza.E, embora a História nos mostre que os erros, mais cedo ou mais tarde se tentam corrigir, é também a mesma História que nos mostra que essas mudanças levam décadas...Por tudo isto o meu luto na alma aumenta, em mim que gosto tanto de ser professora!
Será que me vão deixar continuar a gostar após estes 34 anos de exercício?
Um abraço solidário
Gracinda Castanheira

Anónimo disse...

Mota, desta vez levas mesmo vinte valores, embora eu preferisse não os atribuir. Tu estás cheio de fé e continuas cheio de ânimo.Eu tenho ânimo ainda, mas não tenho fé, porque começo a ver muita gente com o velho discurso de que não vamos a lado nenhum . E já se vê muita"graxa" nos medíocres do mercado, nos das licenciaturas compradas a qualquer preço ou leiloadas no mercado público, de cabeça para baixo, meios envergonhdos da sua fraqueza e da sua cobardia, mas à espera de um lugar ao sol. Que vão esperando e vendo. Não há lugar para todos os Pôncios Pilatos. Mas o que mais me irrita são os que disseram mal desta política,os que não estão de acordo com ela,os que se fartaram-se de escarnecer "Deles", mas agora já mudaram o discurso. Que praga de gente ruim, que praga de pessoas" sensíveis", que "não são capazes de matar galinhas/mas são capazes de comer galinhas".

Anónimo disse...

Ânimo,colegas!Vamos continuar a pensar que os professores,desta vez,não estão a brincar,não estão a pensar baixar os braços,não.Estejamos atentos,informados,isso sim,para quando a Senhora (ad)Ministra mentir(mais uma vez) a«falar verdade»,os professores concluam que esta política da Educação não passa de uma trapaça,de um embuste.
Vamos preparando as «ferramentas» para quando os sinos tocarem a rebate,mesmo!Não esmoreçamos!

Anónimo disse...

Se eu pudesse colocar um post scriptum no teu texto seria assim.

P.S. E num futuro eleitoral próximo alguém perguntará aos professores por quem os sinos dobram e nós responderemos: não é por nós, senhor primeiro-ministro.

Abraço