quinta-feira, 24 de abril de 2008

25 de Abril! Apesar de tudo (2)*

Aquela velha e teimosa senhora chamada utopia
(2ª. PARTE)
Mas o que é que foi ou como é que foi verdadeiramente o 25 de Abril? Que resta dele? O que é que se perdeu e o que é que se ganhou? Como recuperar o seu sentido épico?
O 25 de Abril foi um golpe de Estado, conduzido por oficiais intermédios, os capitães, seguido de uma revolução popular, que os militares não previram nem tiveram condições de conter ou de controlar. Vitoriosos no golpe, os capitães não entregaram o poder aos generais, quebrando desse modo a cadeia de comando, e enfraquecendo drasticamente o poder político-militar, que não mais conseguiu conter os ventos da liberdade, à solta pelas ruas do país.
O povo saltou para a rua, e foi na rua que explodiram todas as tensões acumuladas na sociedade portuguesa, assistindo-se a uma enorme vaga de reivindicações sociais e políticas. Esse movimento popular discutia tudo, e tudo transformava num mar de esperanças, não aceitando outro limite que não fosse o sonho da criação imediata de um céu na terra. O poder politico-militar, esse quase sempre seguia a reboque da acção empreendedora desse povo eufórico.
O povo perdeu o medo, que respeito já não tinha, ao aparelho de repressão política do regime, cercou, assaltou e destruiu a PIDE, a Legião, a Mocidade Portuguesa e a União Nacional. Não pediu licença a ninguém e conquistou, na rua, sem que ninguém lhas tivesse oferecido, as liberdades de associação e de expressão a todos os níveis. E isto é que foi a revolução. Isto é que fez tremer todas as hierarquias instituídas, e ousou mesmo alterar radicalmente a relação de forças existente no plano salarial, das condições de trabalho, da segurança social, da contratação colectiva, das férias pagas, da liberdade de organização sindical, da justiça social, e questionou até a própria apropriação privada dos meios de produção.

O que resta de tudo isto? Sabemos que muitas das conquistas de Abril foram traídas, derrotadas, subvertidas, abandonadas, principalmente com prejuízo, e isto é que dói, do mundo do trabalho, do mundo das preocupações sociais. Em alguns domínios, de recuo em recuo, foi-se perdendo tudo. E em muitos, que viveram esses acontecimentos, e neles participaram de forma activa, surgiu a tristeza, o desencanto, o abandono, a mágoa, o cinismo até. Foram-se embora, e a política ficou mais pobre sem eles. E continua cada vez mais pobre sem eles. E quase ninguém os veio substituir.
Nem tudo foi em vão, porém. Muito do essencial foi-se. Permanece, porém, ainda algo a realçar e a ter em atenção, quer no domínio das liberdades conquistadas, quer no domínio dos direitos sociais (cada vez mais ameaçados) e políticos então alcançados, quer no desenvolvimento alcançado, quer na abertura ao mundo.
Perdeu-se muito do 25 de Abril. E, nos tempos que correm, continua a perder-se muito do que se esperou, muito do que se sonhou, muito do que se conseguiu. Perdeu-se a ousadia, a coragem e a frontalidade; perdeu-se a motivação, a espontaneidade e a sinceridade; perdeu-se a vontade, os sentimentos e as ideias; perdeu-se a paixão; perdeu-se até a esperança e a utopia..
A revolução foi uma paixão, explosão de energias incontroladas e excessivas que nos encheram a alma. Mas, naturalmente, foram-se diluindo na normalização das instituições democráticas. Tudo entrou na normalidade. Tudo ficou normal. E hoje o normal tornou-se tão assepticamente normalzinho que já é incomodativo. Morreu a revolução. Morreu a paixão. Fugiu o sentido épico duma consciência de povo orgulhoso, crente e vivo.
A paixão é sempre breve e tem de morrer, pois a sua beleza excessiva absorve-nos e vira-se contra nós. Mas esse tal sentido épico não. Deveríamos recuperá-lo, por amor á liberdade, à democracia, à participação, à consciência, à responsabilidade individual e colectiva. Sem ele, aproximamo-nos a passos largos do empobrecimento catastrófico de ideias, da diluição dos valores, da política reduzida a uma coutada de profissionais, cujos lugares se pagam ao preço da obediência e do silêncio.
Precisamos de reencontrar esse sentido épico da acção como povo. A política precisa de voltar a ser vivida por todos. Se não com paixão, que não há como a primeira, pelo menos com o amor próprio que dignifica o homem no exercício das responsabilidades que lhe competem como ser. Só assim se evitará este adormecimento castrante e irresponsável e se incentivará a fecundidade e a responsabilidade do livre pensamento, do espírito crítico e da memória crítica, cada vez mais necessários.
Esta seria a melhor forma de honrar o sentido épico que nos vem da história, dos nossos melhores pensadores e do espírito de Abril.
E o que deve dar ânimo a todos os que honradamente se bateram ontem e se batem hoje pela implantação, aprofundamento e dignificação permanente da democracia continua a ser aquela velha e teimosa senhora que se chama utopia, e que dá também pelo nome de liberdade, igualdade, fraternidade, e empenho na construção de um mundo melhor para todos, e com a participação dignificante e consciente de todos.

Só essa velha e teimosa senhora, a utopia, nos pode dar o fogo do ser.
Porque a utopia é a alma de um povo. E um povo sem alma não é povo.

Porque a utopia é a alma do homem. E um homem sem alma é cadáver.


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Notas: Continuação de 25 de Abril! Apesar de tudo, no TempoBreve; ver "notas" na 1ª. parte.

8 comentários:

Elisabete disse...

Continuo de acordo.
A utopia é a única coisa que nos leva sempre para mais alto. É a perfeição por que a nossa alma anseia.
Um abraço

Anónimo disse...

Ora viva, Sr. Tempo. Havia algum tempo que por cá só passava de fugida porque os temas que abordava eram sempre sobre o mesmo. Compreendo. Agora sobre o 25 de Abril, esclareça-me, por favor: a génese de todo o movimento dos tais oficiais intermédios - os capitães - não foi uma questão de carreira profissional? Segundo me lembro de alguns relatos que ouvi anos mais tarde, os "milicianos" estavam a "passar a perna" aos oficiais de carreira, e foi assim que tudo terá começado. Ou não? É que, além de não ser do meu tempo, as mulheres tinham muito pouco a ver com a tropa...
Quanto à utopia, compreende-se que o POVO, depois de ter agradecido e apanhado a boleia dos "capitães", também tivesse muitas contas a ajustar. Infelizmente, porém, logo apareceu quem lhe trocou as voltas, a começar pelos ditos! Outras guerras...
Tenha um muito BOM DIA

Anónimo disse...

Afinal este cravo nunca mais murcha...mas é tempo de virem outras flores.já tenho saudades de vides e vinhas e homens cminhando sobre a água. Vamos arribar, granito encantado!

Elisabete disse...

Também acho! Isto assim não tem graça nenhuma...
Vá lá! Não se pode desistir: o paraíso não está à vista.
Um abraço fraterno.

Anónimo disse...

Ora viva,Sr. Tempo,
Parou,o «bulir»?Que lhe aconteceu?Que aconteceu ao t/Tempo?!Não me diga que os ciclones a que temos assistido,lhe destruiram a(s)vinha(s)!Não se preocupe,se for necessário,revolveremos as sementes e as raízes,voltaremos e refaremos a sementeira.Não se esqueça disso.Não murchei ainda.Continuo a lutar pela cor e pelo perfume.
Um abraço visual e cheio de esperança.

Anónimo disse...

Bossuet descreve três tipos de silêncio: o silêncio de zelo, usado para a concentração numa tarefa; o silêncio prudente, usado nas conversas; e o silêncio pacinente, aplicado nas contradições...
Espero que o silêncio lhe diga que ainda há muito por fazer, e que o traga de volta, porque ainda não é tempo!

Um Abraço?
Adriana

Anónimo disse...

Ora viva, Sr. TEMPO. Confesso que não imaginava vê-lo assim tanto tempo: calado, como que a "deliciar-se" com o desespero de quem espera...
Não sei porquê, mas habituei-me a imaginá-lo mais corajoso, mais decidido, tendo em conta tudo o que por aqui tem deixado para nosso deleite. Afinal assim não parece. Ou estarei enganada? Meta lá a mão no fundo da sua consciência e verificará que assumiu, com muitos, como que um compromisso a que agora está a faltar... Bem sei que, às vezes, a vida nos surpreende: parece que estamos preparados para tudo, mas assim não acontece. Mas olhe que é a lei da vida: tudo passa, tudo muda, tudo se transforma. Ficar parado, à espera que as coisas aconteçam, não me parece que seja algo que o caracteriza. Ou estou enganada? Saia lá da sua cova e venha respirar o ar puro com aqueles que também acerditam que a vida vale a pena ser vivida, ainda que com algumas amarguras. Tome lá um abraço e tenha um muito BOM DIA

Anónimo disse...

Tua presença e como a flor da primavera.Todos gostamos de ti.