quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Ainda não sei quem sou

Ando à procura de mim. Ainda não me encontrei. Ainda não sei quem sou.
Sei que já fui menino, sonhando o que ia ser. Sei que já fui D. Quixote, de lança em punho buscando mundos de sonhos a haver. Sei que já fui professor, lavrando campos agrestes, ameigando-lhes terra nova, e lançando-lhes às manadas, em momentos de raros lampejos, sementes de esperança e sonho, para delas nascerem homens. Sei que já fui tudo isso. Que fui e que ainda sou. Mas quem sou ainda não sei.
Inventei-me em histórias, de que eu fazia parte. Inventei histórias outras que a mim mesmo contava. Até inventei anedotas, sendo eu a anedota ou não, e que a mim próprio contei. Apareciam-me de repente, em qualquer hora e lugar, desde que eu estivesse só, namorando fantasias. Depois de me aparecerem, era só deixá-las correr, que elas sabiam o caminho.
Algumas eram tão ternas, e outras era tão amargas, que eu, fingindo arrogância, alçava os olhos ao longe, para que a água corresse dos olhos, sem qualquer impedimento, por baixo das lentes dos óculos, e fosse esconder-se nas barbas, aquecendo-me a pele da cara. Mas também me apareciam daquelas tão cheias de ironia e sarcasmo, ou de absurdo tamanho, que também me faziam chorar, mas de rir à gargalhada. Nunca as contei a ninguém. Mas também como podia?
Fui menino e professor, professor e D. Quixote, e fui também as histórias que a mim mesmo contei. Tudo isso ainda sou. Mas quem sou ainda não sei.
Talvez eu seja as palavras que alimentaram os enredos do menino D. Quixote, professor dum mundo novo, e das histórias que me contei. Mas se eu sou essas palavras, teria que ser todas as outras: todas as que eles não pensaram nem sentiram; todas as que eles não conheceram; todas as que não inventaram; todas as que eu não não senti nem pensei; todas as que eu não usei; todas as que eu não sei; todas as que eu não inventei.
Por isso, eu posso muito bem ser essas palavras todas. Mas quem sou ainda não sei, que não as conheço todas. E nem sequer sei combinar, com as poucas que eu conheço, a infinidade de sentidos que eu seu que elas têm.
Eu posso ser o menino, posso ser o D. Quixote, posso ser o professor, posso ser minhas histórias, posso ser todas as palavras, e sei que sou tudo isso, mas quem sou ainda não sei.
Ando à procura de mim. Ainda não me encontrei. Ainda não sei quem sou.

16 comentários:

Anónimo disse...

"...Puras miragens, puros impossíveis,
Um a um
Foram morrendo sem deixar ao menos
Traços visíveis
Da ilusão fugaz...."
Ao ler o seu desabafo, lembrei-me destas palavras de Miguel Torga, que tanto aprecia. Já experimentou perguntar àqueles que dizem conhecê-lo quem você é mesmo? Começando lá por casa, pelos tais alunos a quem ensinou coisas, ao Sancho Pança (certamente companheiro de muitas "lutas"), aos que se dizem amigos...
Quem sabe se não se encontra a si próprio em tudo aquilo que tem escrito, nas anedotas que inventa mas que só a si conta, nas histórias que imagina para deliciar as crianças num passeio pela praia...
Pelo que escreveu deduzo que tem barbas. Mesmo assim, ainda que seja só enquanto lava os dentes, pergunte ao espelho quem é...mas não tenha medo da resposta que vai ouvir. É que você é mesmo isso e não precisa mudar muito: seja você próprio, sem preconceitos! Vai ver que os outros irão gostar da sua descoberta. Nisso aposto um abraço e o desejo de um muito BOM DIA.

Anónimo disse...

Você já foi menino,você já foi professor, você já foi Quixote e agora você é Tempo,e porque é tempo, é eterno sendo breve,que as palavras que escreve hão-de ser lidas noutros tempos, por genes de tempo seu que irão verter lágrimas mansas como algumas que já verteu.
Vá buscar um pucarinho e colha nelas as que eu estou vertendo.

Anónimo disse...

Se voçê foi d. Quixote a gente já se encontrou várias vezes.

Anónimo disse...

Caro Tempo
Espero que se encontre, antes que a Asae o encontro a fumar uma cachimbada...

Anónimo disse...

... ou a ministra... lol

Anónimo disse...

E se respondesse aos comentários,seu preguiçoso?Vai levar tau tau!

TempoBreve disse...

Olá, maranhas!

Começo mesmo por si, tal é o medo da trepa.
Já devia ter respondido, mas o tempo não dá para tudo. E, como se isso não bastasse, às vezes os meus comentários são mais longos que os textos que escrevo e deixo nas páginas que são principais. E chegam até a ser melhores. Depende do assunto, e ainda mais da ocasião.
Mas, antes que ainda me bata, eu vou-lhe aqui prometer que amanhã vou actualizar todos os comentários em atraso. Ao menos os deste texto - "Ainda não sei quem sou".
Agradeço-lhe a visita. E o protesto também.
:-)

TempoBreve disse...

Sancho Pança!

Espero que você saiba o homem que você é.
E compreendo o que diz, pois a coisa de que fala é uma coisa tenebrosa, sem ideias nem princípios. Mas a culpa não é dela. A culpa é toda nossa, que deixamos quem em nós mandem coisas de quatro patas.
Elas bem tentam disfarçar, mostrando que andam em duas. Mas eu cá sei muito bem que, quando andam só em duas, é porque estão a actuar naquela parte do circo em que se exibem os animais. E eles treinaram muito.
E também são muto esquisitos, porque são traumatizados. Tiveram infância difícil. Imitam ora pai ora mãe. E isso confunde-os bastante.
Ôbrigado pela vinda.
Obrigado e um abraço.
E porte-se bem, está bem? Se não, digo ao D. Quixote que lhe dê umas palmadas.
:-)

TempoBreve disse...

Caro Artur!

Não me importo com a ASAE, a não ser para me rir de façanhas tão heróicas que lhe estão cometidas. Eu sei que isso é sacrilégio, neste país onde tudo lambe o rabo à autoridade. E esta parece que gosta. E ainda se cobra por isso.
Mas rio-me mais daqueles que andam aos saltinhos contentes, com tanta proibição.
É um prazer vê-los a olhar de soslaio quando entramos. E eu, só para os provocar, demoro uma infinidade a carregar o cachimbo, depois a arranjar o tabaco, depois a pô-lo em nível, depois a abrir a chaminé, depois a experimentar a ver se o ar passa bem, depois a afagar a fornalha, depois até a cheirar o tabaco e a madeira. E eles sempre a olhar, de soslaio e de atalaia a ver o que é que acontece. Já vi alguns a tremer, tanto era o nervosismo por tão demorada espera.
Qualquer dia vão proibir-nos de pensar e ter memória. Olhe que já não falta muito. Então se você for jovem, olhe que está bem tramado. Eles chamam-lhe coitadinho, tratam-no como coitadinho, dão-lhe notas de coitadinho, desde que você não pense. E se pensar está tramado: tem a ASAE do pensamento a correr atrás de si.
Um abraço para si.
E a ASAE que vá.

TempoBreve disse...

D. Dulcineia!

Você devia saber que eu fui e ainda sou esse grande D. Quixote.
Ora agora se nos cruzamos por aí, isso não lhe sei dizer. Vou perguntar ao Sancho, a ver se ele a conhece. E me saberá dizer se você é a Dulcineia, ou só mais uma Dulcineia.
Você sabe que na história só há uma. E que essa uma é única. Você seria capaz de honrar um tal cavaleiro que a visse única e assim?
Quando passar pelo Sancho, levante um pouco a cabeça para ele lhe ver o buço. Assim ele saberá que a Dulcineia é você. Ou você também não sabia que uma das melhores prendas que a Dulcineia ostenta é o buço que ela tem?

:-)

TempoBreve disse...

Cova da Moura!

Este comentário leva uma semana de atraso, pelo que peço desculpa, uma acção que nada custa, e que fica sempre bem.
Passo o Torga à frente, pois já falei sobre isso no texto acima deste.
Depois do Torga, sugere que eu pergunte quem sou a quase todos aqueles que se cruzaram comigo nas coordenadas da vida: àqueles de lá de casa; àqueles amigos meus, mais próximos ou mais distantes; àqueles só conhecidos, e de mera circunstância.
Sugere que lhes pergunte, mas eu não vou perguntar. Seria temeridade. Seria uma injustiça. Seria até crueldade. Não iriam entender. Poderiam ter que mentir. Poderiam ter que calar. Poderiam ter que corar. Mas o mais provável seria, verem no meu perguntar, apenas mais um gracejo. Teriam toda a razão, que uma pergunta assim, não se faz assim sem mais não. É pergunta que incomoda, pois, só de pensarem nela, poderiam descobrir, que deviam ter respondido, antes de eu perguntar, e sentir-se mal por isso. E isso não quero, não.
Ao amigo Sancho Pança, amigo de muitas lutas – é isso que você diz -, a esse já perguntei. Olhou para mim e riu-se – o mandrião nem disfarçou -, e eu vi naquele seu rir que o Sancho era eu. Foi então a minha vez de olhar para ele e rir-me; e não é que o atrevido ousou descobrir no meu rir que o D. Quixote era ele? Mas olhe que me vinguei desse seu atrevimento, vingando-me de mim também, na conversa que se seguiu, mas que fica para depois.
Quando perguntei ao espelho, aconteceu quase o mesmo que aconteceu com o Sancho, com pequenas diferenças, que mais tarde contarei. Agora só lhe adianto que o espelho também se riu.
A alunos não se pergunta. Pelo menos enquanto o forem. E mesmo depois também não. E eu nem sequer sei se alguma vez os tive. Mas é para mim uma honra que você possa pensar que eu sou um professor. E só não lhe digo que sim, para não ter de contar aqui algumas histórias, como a daquela turma inteira que. Então não é que me enganaram?
Quanto às histórias com crianças, vagueando pela praia, teria que lhe contar as histórias da bicharada que tenho guardada no mar. E também a verdadeira história de como se inventou o vinho. Foram os três porquinhos, sabia? E a dos três veados, que são três histórias distintas, sendo que a todos dei vida: a dois porque os inventei e criei; a um porque não disparei.
Quanto àquilo das palavras, é capaz de ser verdade. Assim como é verdade você já ter reparado que há um mundo de histórias que agora não posso contar.
Agradeço as suas palavras, tão sábias no aconselhar, e que me soam sinceras, sinceras e até sentidas. Por isso lhe contei tudo isto. O mais fica para depois.
:-)

Anónimo disse...

A beija-flor ficou sem resposta.

TempoBreve disse...

Caro anónimo!

Não basta já a ginástica que faço para ir respondendo aos, assim a modos de pouco a pouco, e ainda vem você para aqui azucrinar-me, lembrando-me das minhas faltas, é?
Descanse que o passarinho / passarinha vai ter em breve resposta. Isso lhe prometo eu. E não foi esquecimento, que eu não sou nenhum "crates". Benja-me deus; antes ser galinha depenada.
Com tudo isto, quero é agradecer-lhe essa sua peocupação.
Ibrigado e um abraço.
:-)

TempoBreve disse...

Beija-flor!

Agora, depois de toda a confusão que a passarinha causou - embora você não tenha culpa nenhuma, tal e qualmente como eu -, eu até hesito em dizer "cara" beija-flor, não vá alguém pensar que.
Sim. Parece que agora eu também sou um pouco o Tempo. Desse tempo que você fala.
Foi uma grande ternura, a lembrança que você teve de, por arte do falar, o Tempo poder ficar por aqui mais algum tempo, mesmo depois de partir. Por isso, vou-lhe contar.
Num dia, e num repente, lembrei-me eu e disse, de modo a se ouvir bem:
- Vou começar a escrever cartas para os meus netos.
Como netos não havia, nem se podia prevê-los, logo uma voz disse:
- Isso tem lá algum jeito!
E logo outra voz respondeu, de forma muito segura e sentida, de quem pode alimentar o sonho de um dia vir a ser jovem mãe:
- Claro que tem muito jeito. Eu acho que até devias. E devias contar as histórias que eu já te ouvi contar.
A conversa ficou por aí. Mas não acha que o Tempo pode dar um jeito naquilo que eu daquela vez disse?
E não acha que tem jeito?
Claro que quem disse que eu devia escrever cartas para netos, ainda por existir, de certeza vai chorar, um dia quando ler isto.
Mas não se ponha você agora a chorar também.
Posso deixar-lhe um sorriso?
:-)
- Claro

Anónimo disse...

Caro Professor,é com alguma desconfiança que me interrogo sobre a sua afirmação preocupada:"Ando à procura de mim."
Julgo que a dose de ironia que lhe acrescenta é evidente,já que a sabedoria que o caracteriza é superior à incerteza quanto à sua existencia!Mas isso é outra história! Plo menos,com este seu desabafo,mostra que pôs a sua divindade em descanço,mas não torne isto um habito, para dar luz ao seu magnificiente humanismo!

Betania

TempoBreve disse...

Cara Betânia!

Oh, sua desnaturada, então a menina atreve-se a vir aqui visitar estas paragens suspeitas? E como se não bastasse, esse seu atrevimento, vai daí e abre a boca, dizendo a todo o mundo que eu sou um professor? Olhe que as pessoas podem ler isto e acreditar mesmo que sou. Veja lá no que se mete.
E não se ponha para aí a anunciar que eu trago no bolso e ofereço umas doses de ironias, outras de sabedorias, outras de humanidade. Olhe que hoje isso é crime. Hoje não se querem professores que ofereçam mescadorias das que você diz que eu tenho. Isso é muito perigoso.
Ainda bem que você escreve isto em textos já atrasados. Por isso poucos vão ler. O que é uma grande pena, que eu ia ficar vaidoso se lessem.
Vou-lhe dar um dezassete por causa das mentiras que disse.
:-)