sábado, 22 de dezembro de 2007

A porta dos deuses

No seu movimento aparente, o sol fecha agora um ciclo para abrir um outro. Na elipse que vai desenhando ao longo do ano, ele está agora no seu ponto mais afastado em relação a nós, e na sua declinação máxima a sul. Por isso nos aquece menos, aqui no hemisfério norte. É o Solstício de Inverno, o dia mais curto e da noite mais longa do ano inteiro. É o que nos diz a Física e a Astronomia.
Os homens de antanho, porém, não confiavam muito na ciência fria, e iam mais além. Aquecia-lhes o céu os olhos, desde há muito tempo, e eles viam lá deuses velando por eles, protegendo-os de desgraças e medos, abençoando-os com esperanças e sonhos; e deram nomes a esses deuses múltiplos, desenhados a fogo pelas estrelas; e para esses nossos antigos, todas as coisas no céu, e até na terra, se não fossem deuses, então teriam que ser obra deles; e foi por isso que eles, ao Solstício de Inverno, chamaram a porta dos deuses.
E fizeram bem. Que os deuses já cansados de noite tão longa, e condoídos da penúria dos homens, abriram as portas e entraram, trazendo consigo o sol subindo, o sol aquecendo, os dias crescendo, a noite minguando, a esperança aumentando, o homem sonhando, a vida brotando, num ímpeto primordial ainda, e sempre renovado; trouxeram consigo a luz e o fogo para iniciarem um tempo de renascimento, mais luminoso para os homens.
Em harmonia com os deuses, os homens antigos agradeceram a sua chegada , acendendo fogueiras nas clareiras dos bosques, nas encruzilhadas, no centro da aldeia, no centro das suas humildes moradas; dizem até que, no meio dos bosques, escolhiam os mais lindos pinheiros, e os enfeitavam para os deuses neles de mansinho poisarem; e celebravam o acontecimento, cantando e dançando, saciando o corpo e saciando a alma, numa embriaguês, sincera e feliz, de amor à vida, a renovar-se sempre. E foi assim que os deuses, o fogo e o pinheiro se tornaram símbolos de eternidade.
Os homens de antanho, na sua ciência mágica, inventaram a porta dos deuses, e, porque a inventaram, os deuses entraram, vindo até eles com o fogo da esperança, do sonho e da vida.
Os homens de hoje estão muito esquecidos dessa magia antiga. Regem-se por leis frias que lhes dizem que tem que ser assim, e eles regelam, descrentes do fogo que a magia tem. Mas ainda celebram. Chamam-lhe Solstício, chamam-lhe Natal, chamam-lhe Ano Novo – nomes encobertos, que nós bem sabemos que o que celebram é, na verdade, a porta dos deuses, e a sua chegada, teimando em trazer-nos, embrulhadas em cinzas, pequenas centelhas de fogo, para acender fogueiras de humanidade em nós.
E tanto é assim que, nestas alturas, muitas almas frias degelam, deixando que delas pinguem gotas de ternura. Oxalá sejam muitas, e sejam para sempre.
Que os deuses abençoem o mundo com inundações permanentes de ternura quente.

4 comentários:

Anónimo disse...

Que os deuses tenham lido esta história fantástica de fantasia e verdade que os celebra pela voz de um tempo que tem a bondade de me tornar melhor, sempre que leio o que ele me diz.
Solsticio de Sol,ESTESTÓRIA !

Anónimo disse...

Leia-se solstício...

TempoBreve disse...

Ibel:

Eu bem sabia que alguém viria aqui deixar um comentário a este texto, remediando, assim, a enorme injustiça de todos o terem ignorado.
Você é que deveria ser a Dulcineia para correr mundo com seu D. Quixote, semeando idealismo, reparando injustiças, defendendo viúvas e donzelas belas, e também os homens cansados de tanto. Mas acho que o D. Quixote, por tanto lhe querer, não ia deixá-la participar nas batalhas maiores. Só para a proteger, claro.
:-)

TempoBreve disse...

Ibel!

Eu li "Solstício", logo à primeira. Só com o purismo da sua auto-correcção é que vi que faltava a "pena" espetada na cabeça do "i".

:-)