terça-feira, 30 de outubro de 2007

Homo simplex

Ele teme muito que se possa manchar a sua figura tão construída, que tanto lhe custou a criar, e que tanto lhe custa a manter. Teme-se particularmente de personagens capazes de crítica.
Em tom de chacota, a disfarçar receio, chama-lhes fictícias, como, por exemplo, Peles e Tempos, que isso não é nome de gente; no juízo dele, as verdadeiras, essas são as que o adoram, e só essas são gente.
Ora, essas senhoras Peles e esses senhores Tempos andam por aí a dizer mal dele: quando ele aparece, eles lá estão elas e eles, de crítica afiada, a denegrir-lhe a imagem; quando ele fala, lá estão elas e eles, de lição estudada, a dizer que ele mente; quando ele escreve, lá estão elas e eles, de insinuações malévolas, a dizer que não foi ele; quando ele promete, lá estão elas e eles, sempre a dizer que ele não cumpre. Sempre elas primeiro; sempre eles depois.
Depois de muito ouvir, irritou-se. E, como não tinha respostas para dar, disse para si mesmo à socapa, num dia em que estava no seu gabinete a fazer exercícios de colocação de voz:
- Tenho que calar esses arremedos de gente; tenho que calar essas Peles; tenho que calar esses Tempos.
Fez uma pausa, dado o esforço que lhe exigiu o dizer; limpou o suor, num gesto estudado; e continuou pensativo:
- Os que os ouvem, às Peles e aos Tempos, ficam a saber, já que, mesmo quando não usam grandes argumentos, dizem o que sentem, e falam verdade. E os que os ouvem, e ficam a saber, podem muito bem ir contar a outros.
Fez outra pausa, muito mais cansada, doutro tanto esforço; foi ao espelho que disse bem dele; perguntou ao cão, e ele disse que sim; ficou animado, e saiu-lhe esta pérola a sorrir:
- Tenho que os calar. Não por acto censório, que eu sou democrata, mas para bem deles, e para proveito meu e dos meus, e a bem da nação.
De seguida, abriu a janela que dava para o seu quintal e assobiou. Ao primeiro assobio, os seus ajudantes acorreram arfantes, com a língua pendente, salivando contentes, de rabo a abanar. Como deve ser. E ele ordenou-lhes, então, com aquele tom de autoridade, que os assessores bem pagos, e os jornalistas amigos, dizem que ele tem:
- Ide e procurai-me as Peles; as Peles e o Tempo; quero resultados; quero estatísticas. De sucesso, ouviram? E tragam-me soluções para lhes cortar a voz. Radicais, ouviram? E agora levantem lá, dessas cadeiras minhas, esses cérebros vossos em que vocês se sentam, e toca a despachar. Já!

Nota: Hoje as Peles e o Tempo não sou eu; sou eu e sois vós; somos nós.

6 comentários:

Nanny disse...

A bem da nação? Irra!!!

Não lia essa frase há muito tempo...

Oh caramba! E esses ajudantes sentam-se nos cérebros? Espero que não "levem muito na cabeça" se as estatísticas não forem favoráveis... é que depois deve doer ao sentar... sei lá!

Beijocas desconcertantes

TempoBreve disse...

Não lia a frase, mas ela lá está. Dão-lhe é outras roupas: de democracia, de modernidade. Mas a ideia é a mesma: há que aguentar; em nome do défice; há que pagar; que pagar e calar. Em nome de quê? Em nome de quem? Do país e do povo. O mesmo é dizer, que da nação.
Sim, eles senta-se na cabeça de baixo, que é a que têm. Por isso eles confundem pensamentos e sentimentos, com esquisitos ventos que às vezes lhes escapam.
:-)

Anónimo disse...

"Herois do mar"..."nobre POVO"..."nação valente"... vamos parar por agora. Mas que alguém os colocou lá, iso é verdade! E o pior é que outros se seguirão, se estes se não mantiverem (por exemplo, por causa das estatísticas...). E vai continuar a doer, sabe-se lá até quando!
"E o que faz falta"? Bom, o resto já se sabe. Continue a deixar alertas: pode ser que resulte.

TempoBreve disse...

Caro anónimo:

É verdade. Alguém os pôs lá. Mas eu acho que o pô-los lá é uma mera formalidade que eles ainda têm que cumprir. No fundo, no fundo, eles já lá estão. Eles, ou o grupo deles. Que isto é mais ou menos do género: "agora vou eu, e depois vais tu, e depois vai ele; assim garantimos a nossa presença; e o povo pensa que não; pensa que há mudança; pensa que escolhe; mas nós é que escolhemos o que eles escolhem ou não". Bem,isto é outra história.
Sim. Pode até bem ser que se mantenham. Estatisticamente, o país vai em frente. Nas estatísticas, ora somos os maiores, ora os piores: somos os maiores, quando toca a "provar" o quanto eles trabalham, o quanto eles são bons; somos os piores, quanto toca a "provar" como tem que ser, como temos que aguentar,como temos que ter paciência, como temos de pagar e calar.
O que faz falta é acordar e pensar. O que faz falta é ser cidadão consciente e exigente. Só dessa maneira,ou estes ou outros, é que terão mais respeito pelo país e por nós.
Enquanto nos abaixarmos calados e medrosos, eles serão sempre assim. Ou eles ou outros.
Mas, ao contrário do que eles pensam, este país ainda tem gente.
Não acredita? Olhe que tem.
:-)

Anónimo disse...

Os meus olhos estão parvos! Mas que alegoria magnífica e que ironia tão sarcasticamente elegande e desassombrada! E eles é que têm os pontos e penduram os títulos na estante da sua estupidez
envaidecida por causa da sua estupudez(QUE È MUITO ESCURA!).
Olhe que o "artista" a quem pôs as rosas continua a piscar o sorriso maroto, "pelo prodígio da sua cria".
Isto é que vai um TEMPO!!!

TempoBreve disse...

Cara Marisa:
Olhos parvos? Que lindos, então! É. Eles têm listas penduradas nas paredes com os nomes das palestras a que tencionaram assistir; dos seminários a que tencionaram ir; dos livros que tencionaram ler; das vezes que abriram a porta ao chefe; das vezes que; e que; e que. É uma estupidez, que eles cultivam. E nem imagina o esforço que fazem.
Quanto ao artista, ele é bem capaz de continuar a piscar o olho maroto, como que dizendo, babado e manhoso, que gosta de mim.

Obrigado, Marisa! Obrigado e até.
:-)