quinta-feira, 25 de outubro de 2007

José Afonso morreu, mas os sonhos não

A Maria Eduarda Taveira Barbosa - assim se assina -, teve a amabilidade de me fazer chegar ontem às mãos, por interposta pessoa, o suplemento Cultura, do Diário do Minho, de 17 de Outubro. Ela publica, nesse Suplemento, um artigo, Balada de Outono, que é uma evocação emotiva de José Afonso, poeta e cantor.
Nessa evocação sentida, ela fala dela e dele, falando com ele, mas de tal modo que a emoção não perturba a escrita.
Isto, para além da simpática dedicatória que ela escreve a tinta, por cima do título, chamando-me, imerecidamente, “amante da liberdade”, seria o bastante para eu ler o texto atento.
Há, ainda, nesse seu texto, dois momentos que particularmente me tocam. O primeiro é quando a autora cita o seu amigo Daniel Sá: Quando ele morreu, eu ouvi a notícia na rádio, cheguei à escola (minha mulher já estava na sala), e disse-lhe só isto - “Já morreu!”. O segundo momento acontece quando ela fala numa vitrina, onde vê não sei se um cartaz com a imagem do José Afonso, ou com a letra duma canção dele, ou as duas coisas, e, ao vê-lo, desata a cantar: Águas das fontes calai / Oh, ribeiras, chorai / Que eu não volto a cantar.
Como o Daniel Sá, também eu ia de carro, quando ouvi a notícia. Um fogo no peito começou-me a queimar, e duas lágrimas quentes rolaram-me mansas. Não eram tanto pelo poeta e cantor. Eram mais por mim. Eram mais por nós. Ele eram poemas, ele eram canções, ele eram bandeiras; ele eram sonhos, tão sem rumo já, mas tão multicores, que negros abutres iam disputando, mascarando-se das cores que traíam.
Não podia ser. E eu reagi. Desandei para a berma. E parei o carro. Rapei da carteira de fósforos, e rabisquei na capa uma frase que tinha uma causa - que eram os abutres; e um desejo profético – que eram canções grávidas de sonhos. À noite, em casa, o telefone tocava e dizia – O José Afonso morreu! ; e eu respondia - Mas os sonhos não!
As Águas das fontes calai / Oh ribeiras chorai , essas trazem-me à memória as imagens do último concerto em que o José Afonso literalmente cantou Que eu não volto a cantar. Ele sabia que não era um adeus, mas sim o adeus. E todos sabiam. E ele cantava, dizendo adeus sem dizer adeus; e o palco, que era feito de gente, também cantava, dizendo-lhe adeus, sem dizer adeus; e a plateia, que era um mar de gente ainda com vaga, cantava, dizendo-lhe adeus sem dizer adeus. Não era preciso, que a canção bastava. E essas imagens levam-me a outras personagens com quem me cruzei pela vida fora. Mas isso é já outra história.
Para terminar, a Maria Eduarda Taveira Barbosa, socorrendo-se de palavras de Urbano Tavares Rodrigues, diz: José Afonso é a primeira voz da massa que avança em lume de vaga. É uma pena que agora a massa seja surda e muda, não avance e recue, em vagas rasas e escuras. Mas o mar é sonho. E o sonho não morre. E eu sei que um dia ele vai acordar de marés mais vivas.

Nota: 1 - Eu sei que o texto é longo e que demora a ler, mas o que é que esperavam?; 2 –agradeço à Maria Eduarda Taveira Barbosa, o artigo, a dedicatória e a oportunidade que me deu para tecer estas considerações; 3 – agradeço a todos a paciência da espera, e a paciência de lerem, se é que a tiveram.

10 comentários:

Ibel disse...

Ainda bem que você falou do artigo pulicado pela Eduarda Barbosa sobre o Zeca Afonso que ela também teve a amabilidade de me oferecer em mãos,com esta breve dedicatória" Para ti, que também gostas destas "coisas".
Etou agora com o Zeca, eu que corri atrás dele,em Coimbra e na Póvoa de Varzim, em saraus clandestinos, sempre na incerteza e no medo de que os bufos e a polícia nos saltassem em cima.
Quando li o título do artigo,comovi-me imediatamente, porque a balada de Outono é a despedida da vida que ,num tom plangente, mas sereno,atira o adeus eterno à natureza eterna, mas é sobretudo a metáfora mais extraordinariamente fiel ao desalento de quem se sente impotente , com açaime na voz,enquanto os cães ladram.
A gente ouve o Zeca e chora; a gente ouve o Zeca e ri"Eles comem tudo,eles comem tudo...e não deixam nada; a gente ouve o Zeca e ele está aqui vivo; a gente ouve o Zeca e pergunta: ó Zeca como é que já sabias que íamos cantar com redobrada triteza a tua/ nossa balada?
Agora chegou a nossa vez de dizer:"águas das fontes falai/ó ribeiras dançai/ que ele voltou a cantar".
Parabéns Maria Eduarda pelo artigo e também pelo Torga ; obrigada a si, Tempo Breve, por ter dito que verteu duas lágrimas; obrigada aos dois por me deixarem ter lavado a cara com elas, enquanto escrevo e ouço neste Outono, uma balada que de tão leve,se eleva num qualquer horizonte onde é possíve ouvir o pulsar da fonte.

TempoBreve disse...

Ibel:

Eu não andei com o José Afonso, nem atrás do José Afonso. Mas compreendo e entendo muito bem quem, nas circunstâncias que refere, teve a ousadia de fazê-lo.
Para mim, o José Afonso,foi sempre só o artista; foram sempre mais os poemas dele que li, e as canções dele que, em deferido, ouvi. Têm uma mensagem que ainda está viva. Por isso lhe dou razão a si: é preciso voltar a falar, de cabeça erguida, e, por que não, dançar e cantar.
O José Afonso foi sempre para mim, mais o cantor e poeta do que o congregador de sonhos dispersos que levaram a lugares sem saída. Não por culpa dele, claro, mas por culpa de quem o usou, e depois, quando ele disse que não, o abandonou. E até foi bom, porque agora, o seu património artístico e mensagem nele contida, podem ser mais apreciados ainda. E deviam ser mais respeitados. Mas isso é outra história.
Pode ser que eu esclareça mais umas coisitas, mas só se alguém comentar ou perguntar.
Então não é que você escreveu o seu comentário antes de eu ter acabado o texto? Ora faça lá então o favor de o ir ler o texto, mas desta vez já todo inteiro!
Obrigado pela visita.
:-)

Anónimo disse...

Que alegria senti ao ler o texto:«José Afonso morreu,mas os sonhos não».
Não,José Afonso não morreu!Continua vivo nos corações dos sensíveis,dos inconformados,dos atentos,dos eleitos,dos que não perderam a voz!
Não,não morreram os sonhos...esses
ficaram e ficarão pelos tempos que hão-de vir!Eles,«os vampiros»,nunca
hão-de dizer tudo,querer tudo,«comer tudo!»
Um dia,quando o homem já não souber
como explorar e por onde explorar o outro homem,talvez comece a dar mais atenção a uma flor,a uma ave,a
um rio...e aí,quando isso acontecer,será,enfim,irmão e saberá
que o sonho é o estandarte,a mola,o
fogo que nos agita,nos inflama e nos impele para a balada da vida!

TempoBreve disse...

Luís Carlos:

Obrigado por ter vindo aqui; obrigado por comungar comigo palavras de sonho e esperança; obrigado por não desistir; Obrigado pelas palavras siceras e emotivas que me deixou.
Obrigadoe volte sempre.

TempoBreve disse...

Luís Carlos:

Obrigado por ter vindo aqui; obrigado por comungar comigo palavras de sonho e esperança; obrigado por não desistir; obrigado pelas palavras sinceras e emotivas que me deixou.
Obrigado e volte sempre.

Anónimo disse...

Monumento, pedra, balada, o zeca não morreu, caramba! O zeca está cá a fervilhar« o povo é quem mais ordena»,digam lá o que disserem
os amantes da matéria e das «estátuas balofas pesadas»
Ele é o "congregador de sonhos, diz você".
Por isso estamos todos neste blogue.
Até breve.

Anónimo disse...

Bonito post,tempobreve,bonito!
É bem verdade que os ombros, só são macios,«amigos»,quando interesses andam por perto-santa hipocrisia!
Nada mais certo e verdadeiro que as palavras do poeta da luz,do sorriso nato e sentido e das palavras suas «arrancadas» do mensageiro do amor sem medida:
«Aqui estou!Vamos lá DE NOVO a isso!»
Vamos,Zeca,vamos a isso!De novo!

TempoBreve disse...

Caro Pedro:
Tal como você, eu acho que sim, que o José Afonso é símbolo e bandeira de sonhos. Não podemos deixar adormecer os seus poemas e cantos.
O homem não tem que ser escravo dos adoradores da matéria. Basta que queira. Basta que fale. Basta que se una e lute, não se deixando vencer por vozes da fatalidade.
E quanto aos senhores que nos queiram petrificar sonhos em estátuas, teremos que saber dizer-lhes que as suas está têm pés de barro.
Obrigado por ter vindo. Claro que este blogue é seu e é nosso.
Um abraço.

TempoBreve disse...

Belinda:

Ainda bem que gostou. Mas o mérito vai todo inteiro para o assunto do texto, e não para o texto em si.
Vamos lá então, de novo a isso! A isso e já!
Não podemos calar-nos, que o silêncio mata.
Um sorriso todo inteiro para si.
:-)

Anónimo disse...

É evidente que o mérito vai todo inteiro para o assunto do texto(de
si).