terça-feira, 9 de outubro de 2007

O sal da terra

Aquele rapaz tinha o diabo metido no corpo. Lembrava-se das coisas mais espantosas. Desde bem menino.
Um dia, nem ele sabe que idade teria, fez-se sozinho ao carreiro de terra batida, que ligava a casa da mãe à casa da avó,vencendo socalco atrás de socalco, por aquela encosta acima. A distância não era assim muita, mas para tão tenra idade , era como se a casa da avó ficasse do outro lado do mundo.
Não se lembra do caminho no momento em que o fez. Não se lembra da chegada. Não se lembra da avó como ela era, nem da surpresa que ela teve, de o ver aparecer, sem ninguém a acompanhá-lo. Não se lembra da razão,ou se houve sequer razão, para se ter posto a caminho. Era tudo muito vago, e tudo isso caiu no esquecimento, que os cérebros meninos só guardam o que é importante.
Sabe é que chegou à casa da avó e que a avó estava lá. E que, sem qualquer resquício de hesitação, desengatilhou logo ali aquela lengalenga, costumeira na aldeia, que sabia de cor, de tanto a ouvir à gente mais moça que, a mando dos pais, ia pedir favor a vizinho, e que era assim:
- Vinha aqui, que disse minha mãe, a ver se fazia o favor, de me emprestar um bocadinho de sal, para pôr no caldo, que o nosso acabou, e que lho mandava logo, quando fosse à venda para o comprar.
A mãe não havia dito nada. E ele não sabe como é que aquilo lhe veio à cabeça. Sabe é que a avó, crédula nos costumes e na inocência dele, lhe entregou o sal pedido,num embrulho que fez de papel grosso e velho.
Feita a conquista do bem precioso,o rapaz partiu,mas não no sentido inverso do caminho que o tinha trazido até ali. Contornou a casa da avó pela esquerda, e tomou o caminho do monte. Mas em breve o deixou, atalhando por entre urzes e tojos até ao cimo da encosta, arranhando-se todo.
Uma vez lá no alto, procurou um sítio de terra mais mole, e mais despido de vegetação. Esgravatou, esforçado, com os dedos das mãos, até eles sangrarem, feridos nas arestas finas do quartzo quebradiço que desenterrava. Mas não desistiu até ter cova bastante. Dispôs nela o sal,com muito cuidado,que depois alisou com a mão espalmada. Cobriu-o, depois, com uma camada da terra mais fina. E dali em diante passou a ir todos os dias àquele sítio mágico para ver se o esperado milagre estava já a acontecer.
Quando a avó e a mãe do mágico rapaz souberam daquela mentira inocente, que foi o pedido do empréstimo do sal, quiseram saber o que é que ele tinha feito dele. E ele as levou ao cimo do monte. E lhes mostrou o sítio exacto onde o tinha semeado. E quando a mãe se baixou para o desenterrar, a avó impediu-a, tomando-lhe o braço e dizendo:
- Não faças isso. Não toques no sal. Olha que ele já deve estar quase a nascer.

14 comentários:

GraçaGrega disse...

Até apostava que o rico menino a que se refere era vc...
Já nessa altura mostrava a sua teimosia em se meter por caminhos tão longos...:-))
E lá vou ter de aguardar pelo final da história...
Mas que mania a sua de deixar sempre tudo a meio...
Já parece os episódios das novelas...:-)))

GraçaGrega disse...

Doce inocência sem dúvida...:-))

TempoBreve disse...

Claro que aquele valente rapaz não sou eu. Eu ia lá ter feito uma tal coisa assim! Claro que se costuma dizer que pomos sempre algo de nós naquilo que escrevemos.Mas eu sou muito manhoso, e não ponho nada disso.
Lamento não pôr os textos logo aqui todos inteiros. Mas escrevo-os em intervalos. Por isso, muitas das vezes, eles seguem um caminho,e depois viram para outro. Mas há até um bem nisso: é que assim pode notar as diferenças que vão tendo. Mesmo assim,peço desculpa.
E olhe que não são novelas,que essas seriam mais fáceis: era só pôr meninas lindas, de inteligência alcançável,e generosas no corpo,que pode ser de plástico; depois era pôr um mau, para fazer muitas maldades; e depois também um bom, de preferência palerma, a quem tudo acontece. Mas o Garrett já deu a receita, bem melhor do que a minha, naquelas "Viagens" suas.
E agora para terminar,não lhe cansando a vista, agradeço que tenha notado a doce inocência minha.
Obrigado,como sempre, e fico à espera de si.
:-)

Ibel disse...

A história não precisa de ter continuação, para se perceber tudo:a irequietude sonhadora do menino,o gosto pelos atalhos secretos,(será que ele também tem um blog?),a curiosidade pelo misterioso e pelo que está para além da vulgaridade, a vontade de arriscar...
Essa avó é a tal velhice vestida de sabedoria,a encher a vida de poesia.
Bela alegoria e, já agora, virei visitá-lo,para ver se vai continuar a dar-lhe corda.
Hoje mando-lhe um obrigada, sem saber porquê. Você sabe?

Anónimo disse...

Mas a mãe, ou porque as dúvidas lhe mordessem a curiosididade ou porque queria certificar-se de que o filho falava verdade,(que ela conhecia a peça!), vai de pegar na pá que trouxera e começa o desenterro, ainda que pouco custoso para os olhos do rapaz que ainda se lembrava da proeza das escavações.
Pazada para cima,pazada para o lado,vá lá o diabo dizer porquê,a terra começa a sair borrifada de partículas brancas, até que jorros impetuosos de sal joeiraram o ar.
A mãe pasmava, não sabia se para o milagre se para a esperteza da cria prodigiosa, enquanto a avó
de pistola na língua disparava:
-Eu não te disse que devia estar quase a nascer?

TempoBreve disse...

Ibel:

Nem ouso tocar nas palavras que diz sobre a história, para não estragar nada. Comprazo-me nelas com um gosto imenso, que pede mudez.
A sua pergunta, assim a jeito de quem não quer perguntar, é um prodígio de pergunta-mulher. Não lhe vou responder, que não sei se sei. Mas vou indagar.
Esta história vai ficar assim, mas você não sabe se pode acreditar em mim. Terá, pois, que cumprir a promessa de vir visitar-me, só para ver se minto.
Claro que sei porque diz "obrigada". Mas não lho vou dizer,pois tem muito mais graça se dito com esse seu "sem saber".

TempoBreve disse...

Anónimo:

Que quer que lhe diga? Que estou a sorrir que nem parvo? Que você foi quase eu,não fosse aquela coisa da pá? Mas será preciso dizer qualquer destas coisas?
Obrigado pela visita. Venha sempre que possa.
Ah! Que esquecido que sou! Gostei muitoda sua história.
:-)

Anónimo disse...

Só para o ver sorrir, já valeu a pena escrever a história. De parvo, é que você não deve ter nada, pelo que leio de si. E olhe que gosto bastante do que leio e sou leitor exigente.
Ate´breve e também um sorriso:-)

GraçaGrega disse...

A sorrir fiquei eu depois de ler os comentários deixados pelas suas visitas.
Vou voltar...
Este canto promete boas leituras...:-))

TempoBreve disse...

Anónimo,
Ser exigente nas leituras é próprio de quem bem lida com elas. Por isso, mais aprecio que me venha ler. Claro que tenho tembém um certo receio de nem sempre poder corresponder a exigências mais sábias e a gostos de mais requinte. Mas irei tentando, ora caindo aqui, ora me levantando ali.
Um abraço.

TempoBreve disse...

GraçaGrega,

Obrigado por ter vindo de novo. E tem razão, porque os comentários também podem ser boa leitura. Melhor até que a minha.
E olhe que este canto prometerá boas leituras se você cá vier sempre que puder.
:-)

Anónimo disse...

O seu blog começa a estar muito concorrido!São as suas históris ou os seus mistérios que nelas encerra?!
As palavras, fazem parte do seu ofício?LIdas com elas por trabalho ou devoção?

Anónimo disse...

Olhe que este anónimo não é aquele , é outro...ou será outra?
anónimo(a!)2.

TempoBreve disse...

Aos dois anónimos últimos:
Não faço ideia de quantas pessoas por cá passam. Sei que nem todas deixam comentários, mas, guiando-me por estes,não devem ser muitas. Mas as que cá vêm, essas é que mais importam, não é?
Quanto às palavras, por ofício ou não, por devoção ou não, são elas que tecem a nossa condição.
E,quando eu escrevo "anónimo", é só porque não sei se é o ou a. Mas, com nome próprio, fingido ou anónimo, apareçam sempre. Serão sempre Bem-vindos.
:-)